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Dominando a Fera Interna

"Todos nós temos um gatilho. Um estopim. Que liberta a fera interna. Criar filhos nos leva ao limite muitas vezes e temos que saber lidar com essa fera."

Todos nós temos um gatilho. Um estopim. Aquela pequena coisa que nos tira do sério. Aquilo que faz o sangue ferver. Que liberta a fera interna. É a fera que deixamos guardada ali no cantinho, dentro da cabeça, dormente. A fera que temos vergonha de assumir que existe.

Mas, bem, ela existe.

Quando eu virei pai, percebi que teria que lidar com essa fera por mais vezes do que gostaria. Ser pai me deu milhares de alegrias, mas ser levado ao limite da fadiga e dos desafios emocionais envolvidos na criação de filhos me fez perceber que essa fera escondida debaixo do tapete precisaria ser dominada de tempos em tempos. Em contato com outras pais e mães, pude perceber que isso é normal, que todos nós temos esse lado do qual não nos orgulhamos tanto, e que isso se aflora no exercício da maternidade e da paternidade.

Para ser bem sincero, eu sempre fui um cara muito pacífico. Nunca fui de brigar, nem nada. Sempre tive a fera muito bem algemada. Mas, por outro lado, nunca fui submetido a provações físicas e emocionais que criar filhos pode trazer. Nunca vivi nada tão intenso, seja para o bem ou para o mal. E foi aí que comecei a perceber que, principalmente pelas escolhas que fiz na criação do meu filho, se eu quisesse manter uma criação de respeito, sinceridade e afeto, eu deveria começar a olhar para essa fera com outros olhos.

Como eu disse no começo do post, todo mundo tem o seu estopim. Aquilo que desencadeia uma série de lembranças e emoções fortes, culminando numa ação impensada que, quase sempre, é seguida de um gigantesco arrependimento. Eu já sabia que um dos meus pontos fracos eram os gritos. Gritos a qualquer hora e local, aqueles gritos agudos que reverberavam dentro da sua cabeça e que você tem certeza que algumas células morreram dentro do seu ouvido. Mas eu já tinha conseguido lidar com isso, porque sabia que só acontecia porque o Dante estava descobrindo todo o seu poder de vocalização. Sabia também que era apenas uma fase e, de fato, passou.

Mas não parou por aí, e o meu estopim, como pude perceber no último fim de semana, é a mordida.

Eu já me sensibilizava com a “causa” da mordida por causa das mordidas esporádicas que a Anne levava durante as mamadas, isso é algo que eu não tenho nem como imaginar a dor, mas sei que é algo que muitas (quase todas) mães passam. Só que comigo mesmo, isso nunca tinha acontecido.

Voltando ao relato, sábado passado foi dia de Encontro com Apego, um encontro de pais e mães que eu promovo aqui no Rio para discutir temas relacionado à Criação com Apego. Coincidentemente (alguns dirão ironicamente), o tema deste encontro era disciplina positiva, então exploramos muito sobre o que é a disciplina positiva, as alternativas ao castigo, como ouvir as necessidades do bebê por trás de um certo comportamento, o difícil exercício da empatia, e algumas outras coisas. Então, logo após o encontro, eu, Anne e Dante fomos almoçar com uma família de amigos nossos. Já passava das 13:00.

O almoço demorou a chegar na mesa e, enquanto isso, Dante demonstrava sinais claros de irritação. Era uma irritação diferente, que dava a impressão de que ele mesmo não sabia o que queria. Achamos que era cansaço, mas como ele não dormiu quando a Anne ofereceu o peito, e como o papo estava bom com os amigos, resolvemos dar uma insistida, distraindo ele da melhor maneira possível.

A distração não foi muito eficaz. Dante, no meu colo, desceu a cabeça e mordeu meu braço. Mas não foi uma mordida qualquer, leve e de brincadeira. Como um tubarão, ele mordeu e travou os dentes no meu braço. Não soltou, nem parecia que iria soltar. A dor veio, e veio forte.

Em milésimos do segundo, eu senti uma erupção dentro de mim. Era a fera acordando. Nesse minúsculo intervalo de tempo, eu consegui me imaginar claramente dando um tapa no Dante, largando ele no chão ou jogando ele na parede, ou uma combinação maléfica disso tudo. Foi tudo muito rápido, e tinha tudo para dar errado. Eu precisava fazer algo urgentemente.

E então eu respirei.

Eu tentei entender o que o Dante estava me dizendo.

Eu segui meu coração.

Quando eu parei e respirei, consegui olhar para a situação como um todo, e não só no que eu estava sentindo fisicamente naquele momento. Eu pude me afastar da minha própria fera, para tentar entender o que estava acontecendo. Foi aí que eu pude entender o que o Dante estava tentando comunicar e, então pude seguir meu coração e fazer o que eu deveria fazer para resolver o problema.

E quase tão rápido quanto o despertar da fera, ela adormeceu de novo. Claro! Como pude ser tão ingênuo? O Dante estava morrendo de sono, já havia passado bastante do horário da soneca da manhã dele e nós insistimos em não atender sua necessidade. Então, Dante, sendo um bebê de 1 ano, perdeu o controle e agiu por instinto, tentando comunicar o que estava sentindo da melhor maneira que poderia. Este tipo de comportamento é perfeitamente normal.

Entendi que ele precisava da minha ajuda para dormir, então levantei com ele no colo, saí um pouco do restaurante, caminhei com ele no colo por 5 minutos e pronto, Dante estava dormindo profundamente nos meus braços.

Foi nesse dia que percebi que não é uma fraqueza reconhecer a minha humanidade, em toda a sua perfeição e imperfeição.

Thiago Queiroz

Thiago Queiroz

Psicanalista, pai de quatro filhos, escritor, palestrante, educador parental, host dos podcasts Tricô e Pausa pra Sentir (dentre outros), autor dos livros "Queridos Adultos", "Abrace seu Filho", "A Armadura de Bertô" e "Cartinhas para meu pai", participou também do documentário internacional "Dads".

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Comentários

8 comentários em “Dominando a Fera Interna”

  1. Cibele Amorim

    Vc disse tudo que precisa com essa única experiência. Aprendi a ter empatia e foi o melhor q aprendi na minha vida! Tenho uma filha de tres anos. <3

    1. Olá! Imagino como deve ser desafiador criar gêmeos! Você faz parte do grupo de Facebook “Criação com Apego”? Lá é um espaço muito bom para obter apoio não só de mim, como de muitas outras mães e pais 🙂

  2. Filomena de Oliveira - de Brasília

    Nossa Thiago !!!! Voc~e escreveu este texto para mim, não é mesmo ???? Puxa vida !!! Como já falei com você a minha filha está numa fase complicada : batendo, mordendo, arranhando, biliscando, puxando cabelo. E como isso está me tirando do sério !!!!! Como minha fera já despertou várias vezes e por isso acabei dando umas palmadas nela, griatando com ela e me arrpendendo depois !!! Sinto-me sem saber o que fazer !!!! Estou aprendendo a dominar a fera, mas ainda não consegui entender o que ela quer !!! Estou evitando de ver meu computador perto dela pq já vi que ela não gosta, quer minha atenção já que pela manhã estou no trabalho. Ela não faz isso na escola. Faz isso comigo e com o pai, além dos primos, principalmente uma delas. Mas a impressão que tenho que comigo e o pai é fazendo um teste e com os primos seja uma forma de brincadeira. Estou precisando muito das suas orientações, de ajuda para lidar com isso e não fazer o que eu não gostaria, nem que seria o melhor para ela !!!! Grata pelo que já vem me ajudando !!!

    1. Oi, Filomena!

      Pois é, na hora que o sangue esquenta, é preciso muita força de vontade para segurar a fera mesmo. Isso é normal, afinal somos humanos. Nessas horas, o melhor mesmo é você dar um tempo. Afaste-se da situação, respire, tente encontrar lá dentro a vontade de educar sem violência, porque ela continua lá.

      Espero que cada vez mais você consiga mais vitórias na disciplina positiva, e toda a família ganha com isso.

      Um abraço!

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