Você já ouviu falar em parentalidade distraída? Basicamente, é uma forma de cuidar das crianças em que o foco fica dividido entre a criança e outro estímulo ou atividade e, assim, o cuidado com as crianças acaba não sendo pautado por uma atenção integral dispensada a elas, porém, marcado por constantes interrupções. Atualmente, o principal distrator tem sido o celular, e é por isso que o trago como ponto central.
A atenção dividida entre criança e celular tem diversos efeitos, independente de sua idade. Na relação com bebês, cria um obstáculo a algo que é essencial: as trocas entre bebê e cuidador. O bebê está começando a aprender como o mundo e as pessoas funcionam. Para isso, é muito importante que obtenha respostas do adulto e que essas respostas sejam repletas de tons emocionais. O bebê aprende sobre o mundo através dessas trocas que se dão por meio do que chamamos de reações circulares (em que o bebê estabelece trocas com o meio, faz algo e, a partir das respostas obtidas, refina suas ações e aprende como o mundo funciona). Se o adulto para e olha o celular constantemente, o bebê perde essas trocas imediatas, recebendo, como primeira resposta, um olhar que logo é desviado para uma tela. O bebê não sabe que o adulto vai só olhar o Instagram por um minuto e depois lhe dirigir a atenção. Com isso, acaba aprendendo que tem que esperar e que, com frequência, não vai receber respostas às suas interações.
Em crianças maiores, estudos demonstram maiores taxas de ansiedade e depressão quando seus pais, estando no mesmo ambiente que elas, ficam distraídos ao celular. Além disso, há uma tendência dessas crianças a buscar formas mais intensas de despertar a atenção destes, abrindo caminho para comportamentos como birras, atos agressivos e impulsivos.
É importante destacar que as crianças aprendem principalmente através de exemplos, da observação do mundo em que vive. Se vocês olharem para seus filhos, verão que, desde bebezinhos, têm expressões faciais e corporais parecidas com as dos adultos à sua volta. Observando mais profundamente, é possível perceber que também há expressões comportamentais parecidas. O mesmo ocorre com as psíquicas, subjetivas. A criança aprende a ser gente no contato com o mundo que a rodeia. Se o celular é sempre presente, ela aprenderá que há algo muito importante na relação com esse aparelho (e, a depender da vivência dela, são diversos os sentimentos que podem surgir, como o de sentir-se em segundo plano, de ter muito interesse pelo aparelho…).
Como se não bastassem os efeitos nas crianças, há estudos que apontam que adultos vêm sofrendo de ansiedade de separação quando estão longe de seus celulares, ficando ansiosos, com a cabeça longe, sem conseguir se concentrar em outras atividades, mantendo uma atenção dividida, o que pode levar a ciclos viciosos de sofrimento por não haver foco no momento presente. Ou seja, essa relação excessiva com o celular também nos prejudica.
Longe de ser algo motivado por causas puramente individuais, esse apego aos smartphones é parte de uma cultura que prega que temos que estar sempre conectados, que não podemos perder nada, até para que não fiquemos para trás em conversas e mesmo no mercado de trabalho. Além disso, os celulares e demais eletrônicos são planejados para ser viciantes, para que nos sintamos recompensados por seu uso e fiquemos o maior tempo possível em sua órbita. Para isso, as cores são chamativas, há diversos sons e notificações e a busca por algoritmos que captem, de forma cada vez mais precisa, nossos interesses. Tudo isso contribui para que nos sintamos contemplados pelo uso do celular. Então é muito fácil nos perdermos e cairmos na lógica da parentalidade distraída. No entanto, essa relação com o celular, além de nos deixar ansiosos, afasta de nós as crianças em momentos essenciais ao seu desenvolvimento.
Portanto, eu faço o convite a uma reflexão com base nas informações acima. O que você considera mais importante, estar presente com seus filhos ou atualizado nas redes sociais? Qual é a necessidade mais importante: a sua, de se manter conectado(a), ou a de participar desenvolvimento de seus filhos?
Se você prioriza estar efetivamente presente no desenvolvimento de suas crianças, indico abaixo algumas estratégias que podem ajuda-lo(a) a deixar o celular de lado:
Dica 0:
Antes de tudo, faça um exercício de reflexão. Pergunte-se: ficar tanto tempo ao celular está de acordo com o que quero para minha vida e com a forma como quero me relacionar com meus filhos? O tempo que gasto no celular é coerente com o quanto quero que ele seja prioridade na minha vida? Minha relação com o celular está causando alterações negativas na minha relação com meus filhos? Se, ao responder a essas perguntas, você se sentir desconfortável, a hora de mudar é agora.
- Desabilite as notificações. Elas fazem com que você fique toda hora conferindo o celular. E a maioria esmagadora delas não é, nem de longe, urgente. Caso não possa simplesmente deixar o celular mudo, coloque-o em modo “não perturbe”, deixando ativadas apenas notificações essenciais.
- Coloque seu celular em um local de difícil acesso, principalmente quando estiver com as crianças. Isole-o, deixe-o em outro cômodo. Defina momentos em que não utilizará o celular de forma alguma. Para começar, escolha momentos mais fáceis, como refeições, banho ou quando for trocar as crianças, e vá estendendo esse tempo gradativamente.
- Defina horários para utilizar redes sociais. Há apps de monitoramento que podem ajudá-lo(a) a controlar isso, além de fornecer uma estimativa do tempo gasto nas redes.
- Deixe na tela inicial apenas apps funcionais, como os de clima, mapas, transporte. Dificulte o acesso a jogos, redes sociais e outros apps que te sugam – tirando-os das telas iniciais ou colocando-os em pastas, por exemplo.
- Durma longe do celular. Se você o utiliza como despertador, deixe-o ao lado da cama, fora do alcance imediato das mãos.
- Saia sem o celular e avise a alguém de confiança para onde vai. Se houver alguma emergência, saberão onde te encontrar.
- Coloque a tela de seu celular em preto e branco para que as cores não fiquem “pulando” e chamando sua atenção. Lembre-se: não é à toa que jogos, redes e notificações têm tons fortes e chamativos.
Caso esse texto e essas estratégias tenham mexido com você, proponho um desafio: faça o teste de ficar um tempo sem usar o celular. Defina por quanto tempo irá ficar longe do aparelho: uma hora, duas horas, um dia? Faça um diário, anote como você se sente durante esses períodos de distância.
O que você sente? Ansiedade? Abstinência? Você se pegou olhando para onde o celular está, levou a mão até ele involuntariamente, sentiu um vazio? Ou sentiu alívio, um peso a menos, redução da ansiedade?
Como ficou a relação com seus filhos nesses momentos de atenção mais focada neles? Sem o celular, vocês se aproximaram? Se abraçaram mais? Brincaram mais? Você esteve mais disponível para eles? Conversou de forma mais calma?
Faça o teste, anote os principais sentimentos que apareceram nos diferentes momentos do dia (com e sem o celular) para que, com isso, possa avaliar quais os efeitos que a relação com o celular tem na sua vida, no seu cotidiano. Se quiser conversar sobre como é a experiência, deixe um comentário ou me escreva.
P.S.: As estratégias foram inspiradas em texto de Alyson Schafer para o Huffpost (Disponível em: https://www.huffingtonpost.ca/2018/06/19/tech-distracted-parenting_a_23462708/) e ampliadas com base em reflexões minhas.
Foto de capa por Helosa Araujo (@helosaaraujo)