O texto de hoje foi escrito pelo querido professor Jader Janer Moreira Lopes[1]
Muito se tem escrito e falado, em formas de lives, encontros virtuais, vídeos e outras modalidades remotas, sobre a vida das crianças nas atuais situações a que todos estamos submetidos devido à pandemia que se espalhou por toda o planeta nessa segunda década do atual século. Convidado por Ricardo Lana, teci algumas palavras sobre dois temas que têm estado presentes em toda minha trajetória de vida profissional: a vivência das crianças e seus espaços de vida.
O confinamento que estamos vivendo é um dado concreto para a grande maioria das pessoas, com exceção daquelas que estão envolvidas em trabalhos que não permitem a criação dessa condição. Milhões de habitantes do mundo, localizados em diversos países, estão em suas residências, tendo experiências diferenciadas dessa ocasião e, em muitas dessas residências, temos as crianças. E qual o significado dessa condição, quando pensamos nessa relação das crianças com seus espaços de vida?
Muitas respostas seriam possíveis e não teria como refletir sobre todas nesse momento, mas uma que tenho ouvido com bastante frequência refere-se à perda da experiência espacial, ou seja, a redução dos movimentos, a impossibilidade de estar em espaços abertos, nos pátios das instituições educativas, nas ruas, nos parques, em praças e em muitos outros espaços que fazem parte do cotidiano das crianças estaria levando à carência de uma prática experimentada pelo “estar” nesses locais.
Estar nessas diferentes partes é muito importante, disso não temos dúvida. Uma das nossas maiores defesas é que a vivência espacial das crianças seja bastante diversificada e que ela possa localizar-se em múltiplos espaços, dialogando com eles a partir de suas múltiplas linguagens. Mas a questão que gostaria de trazer aqui é: o que entendemos por vivências espaciais?
Recorremos, para responder a essa questão, a um teórico do desenvolvimento humano que viveu no início do século XX, trata-se de Lev Seminovich Vigotski. Nascido na Bielorrússia, país do leste europeu, Vigotski morou grande parte de sua vida em Moscou, onde se dedicou a compreender, entre muitas outras coisas, os vínculos que os seres humanos estabelecem com meio em que vivem.
Ao buscar entender quais relações existem, no decorrer do desenvolvimento da vida da criança e o meio natural, social e psíquico que fazem parte de suas existências em diferentes idades, Vigotski utilizou a palavra vivência para definir essa conexão. Poderíamos dizer, então, que, para ele, o termo vivência refere-se à nossa relação com o mundo, com as pessoas, com as diversas coisas que nele existem, com os eventos e, claro, com os lugares. É importante afirmar ainda que, para esse autor, a vivência seria algo que envolve as várias dimensões do ser humano, como as emoções, os afetos, os sentimentos, as funções corporais, intelectuais, entre outras.
Uma implicação desse elo, ser humano e meio, entre muitas outras que seriam impossíveis de descrever aqui, nessas poucas e rápidas palavras, é que conseguimos vivenciar inúmeras situações que não foram experienciadas de forma direta no mundo, tendo por base o contato físico, visual, tátil, auditivo e outras sensações corpóreas que, geralmente, são mobilizadas nessas ações. Isso seria possível e ocorreria, porque somos seres de linguagens e, como tal, capacitados e preparados para ter vivências a partir da linguagem das outras pessoas, de outras situações existentes em nossas rotinas cotidianas. Todos nós, tanto adultos quanto crianças, somos capazes de criar o novo, temos a habilidade da imaginação, o que estaria presente nesses acontecimentos e encontros.
Nesse sentido, ao pensarmos sobre as relações das crianças com os espaços, podemos dizer que esses vão muito além de seus locais imediatos, tradicionalmente acessados pelos seus corpos e por suas presenças físicas neles. Voltamos a afirmar que essa experiência é fundamental, já que a linguagem corpórea das crianças é uma de suas importantes formas de ser e estar no mundo, mas é fundamental destacar que há muitos espaços que podem ser vividos pelas palavras que fazemos chegar até elas, por diferentes situações criadas, em formas de histórias, de contos, de narrativas de nossas vidas, de brincadeiras e de muitas circunstâncias organizadas socialmente.
O importante é que nossas palavras, ações e atitudes permitam estabelecer uma relação de intimidade com esses locais a serem criados e imaginados. Uma intimidade que inaugura um encontro entre esse espaço novo, desconhecido que eu conto, narro, expresso de várias formas e a vida da criança.
O desejo aqui é que possamos compreender que muitos lugares estão por aí, mas que há muitos lugares que também estão conosco em nossas memórias, em nossos livros, em jogos, nas brincadeiras, em muitas coisas e, porque estão por aí e conosco, devem e podem ser compartilhados com as crianças. É isso que temos chamado de amorosidade espacial, essa possibilidade de doarmos esses espaços originais por nós vivenciados para as crianças e, ao mesmo tempo, reconhecer suas formas próprias de vivenciá-los. Ampliaríamos, assim, a ideia de vivência espacial, pois vivência passaria a ser convivência.
Lembramos, assim, que a intimidade com os lugares podem ser constituídas em todos os cantos da vida humana e que esse momento de confinamento pode se tornar uma ocasião rica e cheia de belezas para ampliar a vivência espacial das crianças pelas nossas atitudes com elas, expressas em muitas formas de linguagens e de coexistência.
[1] Professor do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Juiz de Fora e Universidade Federal Fluminense. Coordenador do Grupo de Pesquisas e Estudos em Geografia da Infância (Grupegi) – http://geografiadainfancia.blogspot.com. Atualmente coordena a pesquisa “Exotopos e Vivências espaciais: espaços acompanhados em bebês e crianças pequenas.”
Ilustração por Lorena Costa Lopes – @lorena.costalopes
2 comentários em “Crianças e vivências espaciais em tempos de confinamento e pandemia”
Muito bom!
Amei o texto. Parabéns!