Quando criança eu tinha medo de muitas coisas: bicho-papão, homem do saco, do carro que diziam passar levando crianças. Não me lembro de ter medo da morte, da violência e nem de tiro. Crescendo numa favela do Rio de Janeiro a gente aprende coisas que não gostaria de ter aprendido como se esquivar em um tiroteio, conhecer nomes das armas, ouvir a polícia esculachando o vizinho no caminho e também bem cedo a gente aprende a conviver com a morte.
Mas não é morte natural, de pessoas idosas partindo do nosso convívio. A gente aprende a conviver com a morte banal. A efemeridade da vida é mais viva dentro de uma favela. Morte por bala perdida, morte por violência doméstica, briga de parentes, acerto de contas. A gente aprende tudo isso mesmo se a gente é bem pequeno. Fica gravado. Quando a gente cresce, esse aprendizado vira ativo. É condição marcante da personalidade de muitos jovens favelados: a ausência de medo.
Não ter medo é sinônimo de que se aprendeu a lidar com qualquer situação da vida, é elevar ao nível mais alto a reserva que as juventudes costumam conservar de que nada é possível lhes atingir. Quem tem medo é playboy, menino criado em play. Essas e outras frases são reproduzidas todos os dias, incessantemente entre os amigos, entre os parentes…
Eu já nem me recordo o número de vezes que voltei para casa no meio de tiroteios, ou de quantas outras vezes atendi minha mãe preocupada por eu estar longe de casa durante uma ação policial. Lembro de uma vez em que desci o Morro do Borel no meio de um enorme tiroteio, ziguezagueando pelas vielas, tarde da noite. Naquele dia cheguei em casa. Poderia ter ficado no caminho.
Eu acredito que muita coisa muda quando a gente fica mais velho, mas sei também que outras não. A notícia da morte do Cadu Barcellos, a quem conhecia de longe, amigo de amigos, história muito bonita, um criador que era cria da Maré me deixou atordoado. Golpe pesado. Acho que o que me chamou atenção na história, além da tragédia em si, foi o fato de que Cadu ficou no meio do caminho, tarde da noite.
A gente acha que vai se safar. Quantas vezes eu repeti que saberia desenrolar com um assaltante porque era da favela, ou que ninguém iria querer me assaltar. Quantas vezes achei que me safaria e me expus. Hoje pensei que é preciso ter medo. Que a vida é um bem valioso e que precisa ser preservado. Dentro dos nossos limites, a gente precisa preservar.
Nunca sabemos o que vai nos acontecer no minuto seguinte, mas se a gente consegue se preservar, é fato que a gente deve fazer. Depois que me tornei pai, esse sentimento ficou mais forte em mim. Acho que ser adulto também produziu algo. Mas foram os deslocamentos os principais responsáveis por muitas mudanças.