Quando nós temos um bebê e ele começa a crescer, nós começamos a nos preocupar com o peso das nossas palavras. Começamos a perceber que nossos filhos conseguem entender muito mais do que nós imaginamos, mesmo que eles mesmos não consigam se comunicar perfeitamente através da fala. De todo modo, é nesse momento que muitos pais começam a se preocupar com o que falam e, por exemplo, se policiam para não falar palavrões perto dos filhos. Acho que essa é a preocupação principal de quase todo mundo: não falar palavrão. Mas a discussão é um pouco mais profunda que essa.
Apesar de sabermos do poder que a nossa fala tem perante os nossos filhos, na realidade, nós não temos noção do tamanho desse poder. As escritoras Adele Faber e Elaine Mazlish, por exemplo, em seu livro “Como Falar Para as Crianças Ouvirem e Ouvir Para as Crianças Falarem” escreveram:
… a maneira de os pais verem seus filhos pode influenciar não somente como as crianças se veem, mas também como elas se comportam.
Na minha opinião, apesar de se falar muito no poder do discurso materno, não só o discurso da mãe tem muito poder, mas o do pai também. Na verdade, o poder está no vínculo, ou seja, o poder do discurso é imenso para uma pessoa que tenha um vínculo forte estabelecido com a criança. Em outras palavras, se todos que você ama (e tem como modelo) dizem que você é uma criança “preguiçosa”, você acaba realmente se tornando uma pessoa preguiçosa, porque aquele foi o papel que lhe foi atribuído. É como se fosse uma profecia auto-realizável: ela acontece porque todos acreditam nela e fazem com que ela se torne realidade.
E é justamente por isso que nós precisamos focar naquilo que é bom, nas qualidades que desejamos que se mantenham em nossos filhos. Claro, isso não tem garantia nenhuma de que conseguiremos “modelar” nossos filhos exatamente da maneira que nós desejamos. Essa não é a intenção desse texto, nem minha intenção em nenhum momento da vida, mas o que eu quero refletir hoje é sobre como nós, através de apelidos, rótulos e comentários negativos, acabamos, sem uma intenção consciente, reforçando justamente o que nós menos gostaríamos de reforçar em nossos filhos.
Mas e você? Tente se lembrar de como era na sua infância, esse exercício pode ser bastante interessante. Quais eram os papéis que eram designados a vocês? Que rótulos vocês recebiam dos seus pais? E lembrando disso tudo, volte para o presente e tente avaliar como isso ainda reflete na sua vida, hoje.
Isso é muito forte, eu sei. Tão forte que você pode levar esse papel e interpretá-lo pelo resto da sua vida. Foi assim comigo, e tenho certeza que também é assim para muitas pessoas que já são adultas.
Eu, por exemplo, sempre fui inteligente. Bem, pelo menos era isso que a minha mãe dizia. Com muito orgulho, sempre dizia que eu era muito inteligente, que eu me alfabetizei antes da idade “padrão” — não me perguntem quando, porque eu não lembro quando fui alfabetizado, muito menos a idade “padrão” para isso. Também era vangloriado por estar adiantado uma série na escola. Então, eu era inteligente mesmo e pensava nisso como uma vantagem, uma característica boa, um ponto positivo e até um super poder.
A questão é que, às vezes, até um papel positivo pode ser também uma prisão. Isso me aprisionou durante toda a minha infância e juventude, porque eu era escravo da minha declarada inteligência, vivendo a pressão absurda — tanto a pressão que eu mesmo tinha, quanto a pressão da expectativa dos meus pais — de ter ótimas notas e um boletim digno de aplausos. A minha lembrança mais forte dos anos letivos era justamente essa: pressão e estudo. Afinal, eu era inteligente e tinha que fazer jus a essa minha característica tão boa. Ou pelo menos, era o que os meus pais diziam.
O perigo desses papéis é que eles literalmente nos aprisionam. Uma vez estabelecido um papel, a criança passa a pensar que só tem valor naquele contexto se seguir aquele papel. E, dependendo de como é o relacionamento dos pais com a criança, ela pode concluir que só pode ser amada se seguir o papel. Em resumo, um menino inteligente, não se arrisca a usar a criatividade e liberdade em um trabalho escolar porque tem medo de tirar uma nota ruim e, por consequência, perder o seu valor enquanto pessoa. Uma menina preguiçosa continua sendo preguiçosa porque é assim que ela encontra seu lugar na família dela. E por aí vai.
No meu caso, só na vida adulta que eu me dei conta disso. Eu nunca fui inteligente, pelo menos não dentro da ideia que eu tenho de inteligência hoje. Eu apenas estudava muito, mas estudava muito mesmo: passava horas a fio lendo, encontrando maneiras cada vez mais criativas de memorizar a matéria para as provas, e passava fins de semana inteiros enfiado em livros.
Eu sei que isso também tem uma associação forte com o modelo atrasado de educação que temos no Brasil, mas eu realmente não gostaria de sair muito do foco desse texto. Talvez, num post futuro, eu possa falar melhor sobre o que tenho aprendido mais sobre educação também.
Por outro lado, é óbvio que meus pais não fizeram isso por mal. Afinal, eles só queriam ter um filho inteligente e bem-sucedido. A alegria e orgulho com que eles anunciavam a minha inteligência excepcional para as pessoas era algo realmente genuíno. Eles realmente nunca tiveram consciência de que aquilo poderia ser algo tão sufocante para mim, como nenhum pai nunca pensa assim. Ora, eu mesmo só tive consciência de como isso era sufocante há pouco tempo.
De todo modo, precisamos parar e refletir um pouco para entendermos que, embora não seja tão perceptível no dia-a-dia, o poder da nossa fala é imenso sobre aquilo que nossos filhos percebem de si mesmos. Parte da construção de quem eles pensam sobre eles mesmos depende também do que nós dizemos a eles.
Mas isso é apenas parte da construção, claro. Não podemos ignorar a personalidade dos nossos filhos e achar que nós podemos fazer deles o que quisermos. Não é esse o intuito do texto, como disse lá no início, mas sim de criar uma consciência sobre o impacto que nossa fala tem no que eles podem pensar de si mesmos.
Classificar e rotular nossos filhos sempre terá um efeito limitador sobre eles mesmos, sendo este rótulo positivo ou negativo. Um filho preguiçoso será preguiçoso porque, afinal, é o que dizem que ele é. Uma filha teimosa será teimosa porque é nisso que ela é “boa” em fazer. Um filho “bonzinho” sentirá toda a pressão para atender essa expectativa. Uma filha “responsável” só pensará que tem valor naquela família se for responsável.
E o que eu quero para o meu filho? Eu gostaria que ele fosse feliz e livre, mas que a busca pela felicidade e liberdade também não sejam as maiores prisões da vida dele.
Espero que ele consiga, porque é difícil, viu?
15 comentários em “Libertando Nossos Filhos (e Nós Mesmos) Dos Papéis Que Aprisionam”
To na terapia lidando com esses rótulos hauhaua… e para mim a visão e rótulos dos meus irmãos também tiveram muito peso (sou caçula com diferença grande).
Dos rótulos positivos, tem um texto muito bacana no update or die que falava especificamente deles. Lembro que falava como uma criança que era elogiada pela inteligência podia não explorar campos desconhecidos pela chance de errar e não saber fazer, pois se ela não tinha facilidade em algo não se sentia inteligente. Enquanto uma criança que tinha o esforço e o empenho elogiados, não tinha tantos problemas com isso, pois era ok tentar, experimentar.
Também cresci com o rótulo de inteligente e senti o peso também!
Era exatamente assim comigo. Cresci ouvindo da minha mãe que eu era desorganizada, vim me libertar disso aos 31 anos.