As vezes tenho a impressão de ser inimigo do relógio. Pode ser que seja apenas uma tentativa vã de justificar meus frequentes atrasos, mas talvez (quem sabe?) meus atrasos sejam o custo necessário para não perder de vista as coisas significativas e que a si mesma bastam.
Recordo-me de uma cena ímpar da minha longa relação de amor com minha querida avó, para ilustrar. Eu tinha por volta de dezessete, dezoito anos de idade…
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Eu a observava, encostado num balcão de uma espécie de grande janela que separava a sala de jantar da cozinha. Não notara minha presença. Ali me bateu a consciência da finitude. Lembro-me claramente de tecer o seguinte pensamento, por esforço de decisão voluntária: “Esta é uma bela cena. Gostaria de eternizá-la num quadro com belas pinceladas, mas não sei pintar. Que seja! Desenharei, mentalmente, uma moldura ao redor desta cena e, porque quero e sei da finitude de nossas vidas, jamais esquecerei.”
Desenhei a moldura.
Vovó estava sentada na cozinha, de costas para mim. Sentava numa cadeira de alumínio, com assento acolchoado preto. Sua mão esquerda, em forma de concha, segurava os pedaços de castanhas quebradas que comia, aos poucos, colhendo com a mão direita. Ela usava um vestido caseiro preto, com várias rosas idênticas espalhados ao longo do tecido; das laterais pendiam os dois pedaços de fita feitos para um laço raramente ou nunca usados. Suas costas estavam próximas ao encosto da cadeira, de tal forma que seus pés pendiam levemente, quase tocando o chão, brincando como uma criança num balanço, fingindo querer calçar as sandálias.
Àquela altura da vida eu já sabia a dimensão do amor que tinha por vovó. Também sabia, por óbvio, da ordem “natural” da vida… O que eu não sabia e minha condição de poeta me ensinou naquele dia foi a riqueza do parar.
É a suspensão do tempo cronometrado que permite a construção das memórias afetivas mais significantes, aquelas que se tornam estrelas solares para nossa vida. E para acender esse Sol, é preciso contemplar, sorver os detalhes.
Claro, há quem diga que o diabo mora nos detalhes. Todavia, só o diz aquele que não conhece a divina beleza deles! Como diria Mário Quintana: “Toda tristeza dos rios, é não poderem parar.”
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Foi dessa reflexão que nasceu o medo de fazer parte do grupo das pessoas que só percebem o valor das coisas, depois de passadas. Passei a carregar comigo a necessidade de preservar os momentos preciosos da vida, vivendo-os com total dedicação e plenitude. Já que a vida não permite ensaios, decidi ter intensidade e oferecer presença!
Na minha paternidade, a urgência do trabalho laboral, os atropelos das demandas sociais, os compromissos de projetos pessoais, enfim, as adultices, tem tendido a cultivar uma pressa perigosa e nociva, cada vez mais potencializada na liquidez do mundo contemporâneo. E Cazuza já alertou “o tempo não para”! Tento, pois, combater a pressa como Manoel de Barros, “prezando mais a velocidade das tartarugas que a dos mísseis”.
Convenhamos, é duro, chato e difícil ouvir reclamações dos superiores no trabalho sobre atrasos, ou ver as contas chegando sem encontrar saídas que permitam um bom rendimento aliado a uma presença intensa e demandante de um real cuidador de filhes. É dolorido abandonar, ainda que temporariamente, uma carreira, um sonho profissional, alguns lazeres pessoais.
No entanto, dada a incompatibilidade posta, resolvi optar na minha paternidade, pelas coisas inúteis, por aquilo que a si só basta; optei pela própria paternidade porque, no meu caso, dá sentido à própria existência, é um fim em si mesmo.
Para tentar garantir, conforme descreveu Adriana Lisboa, que eu possa recolher os “cacos de memória como uma criança colhe conchinhas na areia da praia” ao revisitar minha paternidade, algo constante no meu cotidiano, me agarro aos detalhes, às minúcias: o choro tolo, a frase impressionante, as brigas desnecessárias entre irmãs, as dúvidas insistentes.
E você, quantas conchinhas tem parado para colher?