O cenário parece uma loja de brinquedos.
Tem ursinho, jacaré com dentes, fantoche com a boca aberta e um holograma da fada do dente com baú de moedas.
No meio da sala tem uma cadeira com capa de poá rosa e a cabeça da Minnie pendurada.
Entra uma mulher, com tiara de orelhas de rata e um jaleco combinando com o traje Disneyland.
O atendimento começa com a frase: Se você se comportar pode escolher um desses 35 brindes que tem aqui no balcão. Se deixar anestesiar pode escolher 3 deles, e se não chorar ganha o certificado de melhor paciente do mês.
O olho da criança arregala e o mecanismo da recompensa entra em ação. Parece extremamente sedutora a troca.
Eu me comporto, logo ganho presente, então só vou me comportar pois desejo o brinquedo.
Eu não quero comprar briga com minhas colegas da odontopediatria.
Entendo o cenário lúdico, as atrações infantis que prendem a atenção da criança até que o atendimento seja concluído com sucesso. Criar um ambiente familiar ao universo pediátrico pode contribuir para amenizar a ansiedade do atendimento.
Mas o que estamos vendo nos últimos anos é um estímulo ao comportamento consumista da recompensa, que NÃO É EFICAZ.
Eu encaro como um adestramento das crianças, ou seja, você faz o que eu mando e em troca ganha aqui, um cachorro banguela com escova pendurada na coleira.
Vamos ao raciocínio:
Escovar os dentes não é um ato de troca ou uma ação negociável com nossos filhos. Assim como comer ou tomar banho também não são. São atividades necessárias e diárias, que requerem atenção plena dos pais.
Como eu faço meu filho entender que ele precisa disso?
Com muita paciência, muitas tentativas, muita conversa é preciso incluir a criança no processo, fazer com que ela participe do cuidado da própria saúde bucal até que ela entenda o real motivo de escovar tantas vezes.
Trazendo isso para a cadeira de dentista: é preciso ganhar a confiança da criança, explicando que eu, dentista de jaleco branco, estou ajudando a manter a saúde dela e resolvendo um problema que ela me trouxe, logo, preciso da colaboração de todos.
É preciso motivar sem fornecer algo em troca.
Só que isso demanda energia do adulto, respirações sincronizadas e mantras da ioga para exercitar a paciência com a criança que está simplesmente tendo comportamento, adivinhem só: de criança.
Explicar o procedimento, mostrar os instrumentos que soam familiares e abrir uma janela de comunicação, caso ela esteja sentindo dor ou angústia são passos essenciais para começar o atendimento.
Nada disso envolve fantasia da Barbie.
Crianças que são estimuladas com prêmios (isso envolve o dentista, envolve o brinquedo se não chorar no almoço, envolve o dinheiro caso lave a louça e as estrelinhas se fizer cocô no vaso) entendem que comportamento pode ser comprado. Assumem valores de troca o tempo todo, buscando um autobenefício em todas as ações da vida.
O que isso tem de ruim? Quando cessa o benefício, cessa o comportamento.
A criança não aprende que escovar os dentes afasta doença, ela aprende que se escovar vai poder assistir vídeo no celular do pai.
Os valores crescem em bases consumistas e egoístas.
Eu preciso colaborar no dentista porque preciso resolver um problema, e não porque tenho interesse no presente.
O adolescente precisa lavar a louça, não porque o dinheiro que ganha com o trabalho pode trocar de videogame, mas porque ele faz parte da rotina da casa e também suja o talher.
Encher os pacientes de brinde a cada consulta é diferente de presentear a criança. Entendam, houve um atendimento traumático, o paciente finalizou com sucesso o tratamento de 1 ano de duração, a escovação melhorou e paralisamos as lesões de cárie: PARABÉNS, você ganhará um presente pois entendeu que o meu trabalho só teve sucesso porque você colaborou.
Assim como em casa, depois de 14 dias de antibiótico para amigdalite você faz uma surpresa e compra o tênis de luzinha tão desejado.
São ações com propósitos diferentes.
Educar filhos dentro da disciplina positiva e de uma criação com apego envolve também abrir mão de comportamentos que nortearam a nossa infância. Eu fiz muita troca financeira com meus pais, inclusive de gestos de carinho em troca da antiga nota plástica de dez reais.
Hoje, eu quero que as minhas filhas me abracem pelo aconchego que o calor de mãe fornece.
Quero que meus pacientes finalizem o tratamento porque a dor vai parar e o dente ficará sem cárie.
É desafiador.
Mas um desafio que vale vestir a camisa.
Ok, pode ser com a estampa da Minnie.
3 comentários em “Presentinho no dentista: por que sou contra.”
O artigo me fez lembrar de outro extremo.
Quando pequeno eu me tratava com minha madrinha (acho que únicos momentos de contato com ela).
E certa vez ela comentou que foi mordida por uma criança e que a mordeu de volta!
Foi muito assustador e bizarro.
Assim q ganhei autonomia passei a consultar com outro dentista.
Bem interessante esse posicionamento!! Nunca havia pensado nisso! Eu nunca tive medo de dentista, e desde criança pensava em ser ( sou esteticista ) pois meu pai sempre brincou comigo de dentista, tinha brinquedos que simulavam.. tudo foi natural!! Faz total sentido seu texto! Obrigada!!
Nossa, muito bom o texto, muito bom mesmo!!
Concordo muito.
Ah, e só pra deixar minha experiência: sempre amei minha dentista, e ela me acompanhou a vida toda, desde criancinha até a vida adulta. Nunca entendi porque as pessoas tinham medo de dentista. E o consultório dela não tinha nada demais, nada lúdico (porque atendia adultos e crianças), nenhum sistema de recompensa. E ainda assim levo ela no coração (e nos dentes bem cuidados )