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Filho, Vamos Falar Sobre Privilégio?

"Uma carta muito sensível do pai Rodrigo Vieira para que o seu filho leia quando for mais velho. Um grande ensinamento sobre privilégios e empatia."

Filho,

Essa carta é um presente meu, para quando você completar 11 anos, e estiver começando a ver que o mundo tem muita coisa legal, mas também muita coisa que pode ser melhorada. É sobre um assunto que seu pai só foi compreender com mais de 30 anos, e que eu gostaria de ter aprendido com a sua idade.

Esse assunto é “privilégio”. Sabe o que é privilégio? Lá, no dicionário, está mais ou menos assim:

Privilégio: Permissão, momento, ocasião favorável que só é concedida a um pequeno grupo de pessoas: teve o privilégio de conhecer o autor.

Pois é, tem sido um grande privilégio ser seu pai! Minha vida deu um “reset” a partir do momento que descobrimos que você tava na barriga da sua mãe. Me sinto privilegiado por ter assistido o seu nascimento, ter acompanhado seus primeiros passos, seu primeiro passeio de bicicleta, os momentos difíceis em que aprendi a te compreender quando você ainda não sabia se expressar, e todos os outros minutos, até enquanto você dormia.

Porém, hoje eu quero falar de outro tipo de privilégio, que também está no dicionário, mais pra baixo:

Vantagem (ou direito) atribuída a uma pessoa e/ou grupo de pessoas em detrimento dos demais; prerrogativa: os privilégios do presidente.

Circunstância de supremacia, baseada ou não em hábitos culturais e legais, ocasionada pela má distribuição do regime político e/ou econômico.

O que significa isso?

Significa que, ao nascer, você já era privilegiado também. Antes de mais nada, privilegiado por ter pais que não só te querem muito bem, mas que puderam desde antes de você existir contar com os melhores médicos e todas informações pra que o sonho de ter um filho ou filha se tornasse realidade.

Você teve a sorte de nascer homem em um mundo onde ser homem é um grande privilégio. A nossa sociedade deixa o homem fazer o que quiser, ir aonde quiser, seguir a carreira que quiser. Poucas coisas estão fora dos limites para um homem.

Infelizmente, essa não é a realidade das mulheres, que ainda precisam tomar muito cuidado por onde andam, com quem falam, como falam, e até com o que sonham, pois quase sempre vai ter alguém pra dizer que esse ou aquele sonho não vale a pena, não é pra meninas, que é pra ser “mais realista” e tomar cuidado, muito cuidado.

Você também teve o privilégio de nascer branco. O Brasil ainda é um país muito racista, apesar de não gostar de assumir isso. Isso significa que as portas já nasceram abertas pra você. As pessoas já supõem que você é uma pessoa honesta, “de bem”, inteligente e capaz, simplesmente pela cor da sua pele. Parece absurdo, né? Pois é, é muito absurdo. Deve ser muito difícil andar na rua sendo vigiado, ser “suspeito” simplesmente por existir.

Você também teve o privilégio de nascer rico. Talvez você esteja pensando “poxa mas eu não sou rico, eu não ando de Porsche, meu apartamento é até meio pequeno, e tá sendo pago por você e mamãe em 30 anos”…mas, no Brasil, você está em um grupo de menos de 10%. A maioria não pode nem sonhar em ter um carro usado, ou tentar um financiamento do apartamento, pois o banco não deixa nem dar entrada no pedido, às vezes nem passar pela porta. Não têm pra quem pedir um dinheiro emprestado, pois todos à sua volta já devem muito, e já nasceram devendo. Você é rico pois tem certeza que, mesmo que tudo dê errado, sempre vai ter um teto e um prato de comida.

Por causa disso tudo, filho, não esqueça dos seus privilégios. Do privilégio de ser homem, branco, loiro, sem deficiências físicas, sem nada muito diferente dos que fundam empresas, pilotam aviões e governam países. Lembre que nem todos tiveram a sorte que você teve, na loteria do universo, de nascer em uma casa com um pai e uma mãe que te amam muito, e que puderam desde o primeiro dia ler pra você, ter tempo pra te explicar as coisas, te proporcionar tempo para estudar e também para brincar, e que você também teve a sorte de nascer com uma cor de pele que há muitos séculos atrás foi considerada “a cor certa”, e do gênero que, por algum motivo há milênios foi declarado como sendo mais “forte” e “competente”, embora a gente veja todo dia na prática que isso é absurdo.

Isso não significa que você não mereça tudo o que você batalhou pra ter e nem se orgulhar disso. Temos muito orgulho de te ver conquistando tudo o que você já conquistou. Você tem mérito em tudo isso, com certeza, e queremos que você continue sonhando, lutando, ganhando e perdendo batalhas. Vamos comemorar juntos as conquistas e superar as derrotas.

Mas não esqueça que muita gente não conseguiu tudo isso. Não porque não quiseram, não sonharam e não batalharam, mas porque não tiveram a chance de poder sequer tentar. Muito garoto e garota da sua idade nunca ouviu “o que você quer ser quando crescer?”, pois tudo em volta deles proíbe esse tipo de pergunta ambiciosa.

Como escreveu uma vez um cara chamado John Scalzi: ser homem branco, nesse mundo, é como se a gente jogasse o jogo da vida no modo “easy”, e com mais vidas pra gastar. Ainda temos que lutar, pular, vencer monstros, terminar as fases, mas pra quem é homem, branco, cisgênero, é como se as plataformas fossem um pouquinho mais baixas, os inimigos viessem um pouquinho mais fracos. E a gente que tá dentro do jogo às vezes nem sabe que tá no “easy”, porque só conhecemos esse jogo, os obstáculos vêm, os inimigos aparecem, e a gente luta da melhor forma que pode, com todo coração, como deve ser.

Mas aprenda sobre o jogo dos seus colegas, homens e mulheres, de todas as cores, pessoas diferentes de você. Pergunte quais inimigos eles tiveram que derrotar pra chegar onde você também chegou. Não deixe de lutar, mas também não deixe de ouvir e estender a mão.

Então, filho, a sua responsabilidade, enquanto homem branco, é grande, e exige sabedoria e empatia.

Tenha sabedoria pra ouvir o que as outras pessoas têm a dizer. Não tente dizer a um negro o que é ser negro, não tente dizer a uma mulher o que é ser mulher, por mais que você tenha lido a respeito. E tenha empatia para ouvi-los de coração aberto.

Se não concordar com algo, não diga “mas”, e sim “me explica”.

Pergunte mais sobre como eles se sentem, o que eles já viveram, e pergunte a eles como você pode ajudá-los, o que você poderia dizer quando você estiver entre seus amigos de escola e alguém fizer uma piadinha elitista, racista, homofóbica, transfóbica, misógina, ou simplesmente mostrar que não sabe dos privilégios que têm… quando alguém achar que tem algum tipo de direito divino ao que conquistou.

Fale pra eles do jogo “hard” que é jogado pela maioria, e convide a todos pra jogar esse jogo no “multiplayer” quando puderem, e estendam a mão pra quem estiver empacado em alguma fase.  Não se sinta culpado por ter esses privilégios, mas reconheça-os, seja grato e generoso, e aprenda a ouvir e apoiar quem não os têm.

Com amor,

Papai

Rodrigo Vieira

Rodrigo Vieira

Pai de um menino de 3 anos, programador, casado com uma pessoa maravilhosa. Rei das piadas ruins. Gosto de cozinhar mas sou péssimo em seguir receitas. Adoro ficção-científica, filmes, e outras nerdices, e também filosofar.

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Comentários

6 comentários em “Filho, Vamos Falar Sobre Privilégio?”

  1. Flavia Martinelli

    Olá, Rodrigo, me chamo Flávia Martinelli e sou autora de um blog no UOL chamado Mulherias – sobre mulheres das periferias. Estou fazendo uma reportagem que trata sobre o assunto do seu texto: privilégio branco e preciso encontrar mulheres que, apesar do gênero e de também terem vindo da periferia, reconhecem seus privilégios por serem brancas. Você conhece alguma mulher com esse perfil para eu entrevistar? Parabéns pelo artigo, e desde já muito obrigada pela atenção e disposição! Completei meu endereço de email ao enviar esse comentário. Abs Flávia

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