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Entrevista: Um Pai Que Usa Saia

"Conheça Nelson, pai, gay, militante da causa LGBT, feminista, que recentemente descobriu ser soropositivo. Nessa entrevista, ele conta como ele se tornou pai e como a criação com apego entrou na vida deles."

Eu sempre quis fazer uma seção de entrevistas aqui no blog, mas isso nunca aconteceu. Acho que eu ainda não tinha encontrado alguém especial para conversar e entrevistar para o blog, mas uma das coisas mais fascinantes de escrever esse blog e de me engajar com as questões relativas a criação de filhos é a oportunidade que essa vida me proporciona de me aproximar de pessoas tão incríveis, de histórias tão lindas.

Eu conheci o Nelson através do blog. Na verdade, ele me mandou uma foto dele com o filho, usando um wrap, com uma praia linda ao fundo. A foto era para compor a montagem de fotos que eu tinha como foto de capa da página de Facebook do Paizinho, Vírgula! e só essa composição já seria suficiente para dar uma foto absolutamente linda de pai e filho.

Mas, claro, a beleza não se resume à foto. Começamos a conversar – bastante – e eu conheci uma pessoa tão admirável, de uma história tão emocionante que eu disse a mim mesmo:

– Achei a pessoa que quero entrevistar para o blog!

E foi assim, entre tantas conversas, que nos conhecemos melhor, nos acolhemos e nos admiramos. Mas o resultado não é a entrevista que você está prestes a ler, e sim a linda amizade que eu e ele estamos construindo.

 

Nelson, conte-me um pouco sobre você. Quem é Nelson? O que faz de você alguém especial?

Em primeiro lugar eu não sou especial, sou um ser humano normal, como tantos outros que estão aí. Tenho dificuldade de me decifrar. Às vezes, eu nem sei o que eu sou; sei que sou muitos, que sou intenso e dentro de mim jorra uma cachoeira de sentimentos. Sou do amor, da paz, do bem, do respeito, da compreensão, do afeto. Procuro sempre ampliar os meus horizontes para as infinitas possibilidades da vida, quero viver bem e amo viver. Sou da paz, mas já dizia um ditado: cuidado, água doce quando se revolta… afoga e destrói tudo pela sua volta. Isso é verdade! Um rio corre nas minhas veias, não posso ser represado. Meu leito tem que fluir, ele corre livre e sereno, até desembocar no mar que é a vida.

Tenho 25 anos, sou candomblecista e filho de Oxum. Amo loucamente a minha mãe, não poderia ser outro Orixá; Oxum é a minha dona mesmo e eu tenho muito orgulho dela. Sou ator, poeta, perfomer, universitário e estou cursando o 6º semestre do Bacharelado Interdisciplinar em Artes na Federal da Bahia, e o meu foco é o teatro e a performance. Estou desenvolvendo um projeto de oficinas teatrais para adolescentes que abordam a liberdade sexual e do corpo, métodos contraceptivos, prevenção das DSTs, desmistificação do HIV e o combate à HIV-fobia.

Sou gay, militante da causa LGBT, feminista, recentemente descobri que sou soropositivo e estou convivendo com o vírus de forma tranquila. Iniciei o tratamento e me adaptei bem aos medicamentos, que carinhosamente chamo de Jujubas. O HIV entrou na minha vida para me transformar, ainda estou aprendendo mais sobre ele, e estou somando forças ao exército de combate à HIV-fobia. Vou aproveitar o gancho e aproveitar o espaço do blog e da página no Facebook do Paizinho, Vírgula! para divulgar uma página que vem me ajudando muito, e nós lutamos fortemente contra qualquer forma de preconceito, principalmente contra a fobia do HIV. A página se chama Eu e Ele, é um espaço de informação, de convívio de soropositivos e negativos, auxilia e desmistifica muitas coisas, é incrível. Curtam lá e somem forças ao combate.

Você, hoje, é pai. Como você conheceu a mãe do seu filho?

Na universidade. Somos colegas de curso, ela é fotografa e me convidou para posar para ela em um projeto. Ela era amiga de umas colegas de turma e sempre que a gente se via, trocava uma ideia, mas não tínhamos intimidade.

E como você se tornou pai do seu filho?

Clarice teve uma gravidez um tanto conturbada e conflituosa: sua mãe não aceitou sua gravidez e por isso ela teve que sair de casa. O progenitor biológico não quis assumir e eu dou graças a Oxum que ele não quis, porque ele não merece conviver com meu amorzinho, meu pirilampo que só me traz coisas boas. Clarice ficou desamparada, só teve apoio de alguns amigos, da nossa família de santo, e da sua família paterna biológica.

Durante a sua gravidez, ela foi construindo a sua vida e, por causa de um sonho que eu tive lá pelos sete meses de gravidez, eu puxei assunto e ofereci ajuda quando eu soube que ela estava sozinha e com um barrigão enorme. Fui lá para cuidar dela, entendia que essa fase da gravidez era complicada por causa das limitações, e ela tinha uma barriga linda e enorme, não podia ficar só. Então, sem pensar, eu fui para lá cuidar dela.

Fiquei lá com ela no final da gravidez. Acompanhei o final da gravidez, o nascimento do bebê e pós-parto. Fiquei auxiliando, toda vez que ela precisava de ajuda para ficar com o bebê, eu ia. Fomos aprendendo a conviver, eu fui me adaptando a ela, e ela a mim. Aprendemos juntos até hoje.

Clarice logo voltou a estudar e já não dava mais para levar Almodovar para a faculdade, porque, nos primeiros meses, ele ia com ela no sling, mas já não dava mais. Ele crescia, então montamos o nosso horário para que não chocasse e assim, quando ela estivesse na faculdade, eu estaria em casa com ele. Fui me apegando, e eu já não sabia entender o que eu sentia, porque ele me imitava, fazia festa quando eu chegava. Meu coração tremia de tanto amor quando eu estava com ele, quando eu pegava ele no colo, quando ele dormia nos meus braços, e aí eu comentei que eu iria ensinar a ele me chamar de pai e tal… Até que Clarice e eu tivemos uma orientação espiritual e, conversando e percebendo que seria melhor para todos nós, decidi que eu iria registrar o Almodovar. Fomos na defensoria pública, demos entrada na papelada e hoje ele tem o meu sobrenome. É meu filho oficialmente, mais isso pouco importa, porque não é um papel que vai dizer o contrário. Ele já era meu filho desde quando estava no ventre, só não sabíamos disso.

Você já se imaginou sendo pai, alguma vez na vida?

Ôooo e como já… Inúmeras vezes… A primeira experiência que que eu tive com a paternidade foi aos 16, 17 anos, quando minha mãe engravidou e eu tive a minha filha/irmã: ela era linda. Foi incrível acompanhar a gravidez e ver aquela coisa linda crescer. Foi novo para mim porque eu era filho único e nunca tinha passado na minha cabeça que teria uma irmã.

Eu ajudei, dei suporte em tudo e, como o pai também se ausentou, eu assumi o papel de pai, e acompanhava minha mãe em todas as consultas médicas. Era engraçado porque todo mundo ficava olhando com uma cara assustada quando eu entrava de mãos dadas com Mainha nas clínicas, por ela ter 40 e eu ser um adolescente.

O médico, na ultrassom em que descobrimos o sexo dela, deu parabéns para mim todo animado. Ainda lembro dele falando “parabéns, papai, olha sua cabritinha aqui” hahaha. Ela nasceu e eu fui amando-a loucamente, amava o cheiro, o sorriso. Fiquei todo sem jeito qundo eu a peguei pela primeira vez no colo, tinha medo de quebrá-la, mas tê-la no meu colo, nos meus braços, foi a melhor sensação do mundo. Eu nem consegui dormir a madrugada inteira, fiquei feito barata tonta no apartamento com elas, mas acordei cedo e fui correndo para a escola contar para todo mundo que minha irmã tinha nascido. E a partir daí, fui cuidando e o nosso amor foi crescendo. Ela começou a me chamar de papai, e até hoje ela me considera como pai, eu sou a referência paterna que ela tem, apesar de ela saber que sou o irmão. Mas no dia dos pais ela me dá os parabéns, os presentes da escola e eu que vou nas festinhas. Eu amo ser o pai dela, tenho muita sorte, porque ela é minha filha e minha irmã.

Ela é tão linda.

E eu a amo tanto.

Daí, eu fui crescendo e sempre querendo ter um filho meu, sempre pensava e fazia planos. Dizia que eu teria mais três filhos e que minha família ia ser linda. Eu já tenho o nome dos meus filhos todos e quero adotar, também, uma criança soropositiva. Não sei se poderei ter filhos biológicos, mas definitivamente isso não me importa. Amor não tem nada a ver com genética.

Eu faço planos com meu atual namorido e quero que ela seja pai dos meus filhos. Ele já é um ótimo padrasto, e um cunhado-padrasto ótimo. Quero construir uma família ao lado dele, e nossa família vai ser repleta de amor.

Como foi que o seu filho nasceu? Você estava presente?

Clarice queria ter o filho de forma natural, numa clínica de parto humanizado. Fomos lá e tudo, fizemos os exames e ficamos aguardado, mas começamos a nos preocupar porque o bebê ja tinha passado da data esperada. Ela tinha feito uma ultrassom e a médica nos aconselhou a procurar uma maternidade para induzir o parto, porque era perigoso. Daí eu fui atrás saber se pelo SUS fazia cesárea, e encontramos a maternidade da nossa universidade que tem um tratamento bacana. Ficamos lá, na angústia, esperando horas, tentamos induzir o parto, mas ela não sentiu nada, nem uma cólica.

Voltamos para casa e no outro dia tentaríamos a cesárea, mas lá não podia ficar homens acompanhando. Não sei se permitem o pai assistir o parto, mas eu não sei se eu iria conseguir assistir, porque sou muito fraco para dor e sangue… Eu ia desmaiar.

Mas eu fui o primeiro homem que o viu, eu corri para lá quando avisaram que ele tinha nascido. Eu fiquei, “caramba… ele chegou…” Fiz até um poeminha para ele, postei a foto dele, um trecho de uma música e fiquei babando.

Ela e ele voltaram para casa comigo e foi só alegria.

Como foram os primeiros meses de vida?

Durante o primeiro mês, Almodovar ficou a maior parte do tempo em casa. Como a mãe dele mora sozinha, estuda e trabalha, durante a gravidez, ela começou a pesquisar formas de estar com ele e continuar as atividades. Foi quando ela descobriu o sling, e desde que Almodovar nasceu, começamos a carregá-lo assim. No início eu o levava, mas depois ela se recuperou da cirurgia e começou a levá-lo. Nos quatro primeiros meses de vida, Almodovar ia para as aulas com a mãe, e ficava dormindo a maior parte do tempo no sling. Ele também ia com ela para o trabalho, viagens e etc.

Clarice começou a pesquisar sobre Attachament Parenting (Criação com Apego) durante a gravidez, através da sua vontade de ter um parto natural, mas depois, quando decidiu usar o sling, começou a incluir os princípios na criação de Almodovar. Foi me explicando como era, e eu fui achando certo também. Ela também tinha decidido que Almodovar ia mamar só no peito até os 6 meses e que estaria a maior parte do tempo com ela durante esse período.

Nas poucas vezes que ela precisou deixar ele para ir a algum compromisso, ela deixava leite que ela tirava na mão mesmo, porque detesta aquela bomba de ordenhar. Conseguimos assim manter o aleitamento exclusivo até os 6 meses, apesar de toda a pressão que rola sempre de pessoas próximas para dar água, chá e etc. Também não demos chupeta para Almodovar e as poucas vezes que ele tomou mamadeira, foi para beber o leite deixado pela mãe.

Ele também dorme conosco. Almodovar até ganhou um berço, mas nunca usamos e recentemente o doamos. Almodovar nasceu de cesárea, mas na maternidade que nasceu, o bebê fica com a mãe o tempo todo após o nascimento. Então, desde a primeira noite, ele dormiu com a mãe, não ficou fora do alcance dela nem por um minuto enquanto estiveram no hospital. Lá é uma maternidade que prioriza o contato do bebê e também o parto normal; no dia que Almodovar nasceu, foram 17 partos e só ele foi cesárea. Normalmente o que acontece é o contrário.

Quando foi para casa, ele continuou dormindo com a mãe e nunca passou uma noite no berço. Às vezes, colocamos os colchões no chão e dormimos todos juntos. Ele dorme bem à noite, pois se sente acolhido, aquecido e quando quer mamar, o peito está ao alcance.

Em que ter um filho muda a sua vida?

Minha vida está em constante mudança: cada dia é um novo aprendizado, a cada descoberta uma nova ficha cai. Não tem como responder isso, minhas palavras seriam poucas para o que eu sinto. A minha vida agora é uma imensidão de amor e quero que isso perpetue. Me sinto vivo e amando.

Como está sendo a criação do seu filho? Como são os cuidados que você dá e os que a mãe dá?

Nós nos baseamos nos princípios da criação com apego, tentamos aplicá-los da melhor forma nas nossas vidas. Após os 6 meses, Almodovar parou de ir às aulas com a mãe e nós nos organizamos para estar com ele. Ele também começou a comer com essa idade, e a mãe dele se preocupa muito com essa questão. Ela já mantém uma alimentação natural, então Almodovar acaba comendo muita fruta e legume. Ele nunca tomou refrigerante, essas coisas.

Às vezes, come um pedacinho de chocolate quando comemos, mas não passa muito disso. Até hoje ele mama, e vamos manter o aleitamento, se possível, para além dos dois anos. Nós dois fazemos tudo com relação a Almodovar: banho, fralda, colocar para dormir; tudo é responsabilidade dos dois. Quando ele está comigo, eu dou comida, brinco, dou banho, boto para dormir, e ela faz o mesmo quando está com ele. Quando está com os dois, revezamos.

Tentamos sempre entender as necessidades dele, o que está sentindo. É difícil, bebê não fala, e às vezes a gente acha que a criança está fazendo manha, mas aí você lembra que o bebê não sabe dizer o que quer, e muitas vezes não entende o que está sentindo. O jeito dele se comunicar é chorando. Aí você começa a aprender o que cada choro quer dizer, quando ele tá com fome, sono, quando só quer carinho, colo, um abraço.

Que tipo de relação você busca desenvolver com o seu filho?

Em primeiro lugar, quero ser amigo do meu filho, quero que ele confie em mim, que possamos sempre nos ajudar. Não tive um pai presente e hoje carrego inúmeras fissuras emocionais e sou extremamente carente. Não quero que isso se repita com meu filho, quero que ele saiba que antes de tudo somos cúmplices, amigos, parceiros e que estamos juntos para enfrentar qualquer obstáculo.

Respeito é fundamental, amor, dialogo e liberdade serão os alicerces da nossa relação. Não o vejo como posse, ele não é meu, eu o amo muito e quero que ele faça suas próprias escolhas e descobertas sem minha interferência. Eu apoiarei quando for algo que não concordo, teremos espaço para dialogar e ele decidirá sabendo que arcará com as consequências dos atos dele. Meu filho será um amigo, um amor e meu bem querer. Quero cuidar dele e que ele cuide de mim, temos um trato.

Ele é flor do meu jardim e eu sou árvore do pomar dele. Então vamos nos cuidar.

Quais são os maiores desafios que você vive hoje?

A homofobia, as pessoas são invasivas e me magoam pelo fato da minha sexualidade. Isso me deixa p*** da vida, as pessoas não têm o direito de invadir a minha vida, de meter o bedelho. Sou tratado como aberração ou muitas vezes como milagre, ou a bicha que brinca de boneca. Me nego a responder qualquer tipo de pergunta que questione a minha paternidade, sou o pai dele e ponto final. A certidão dele diz e ponto final. Não tenho que provar ou explicar nada para ninguém.

E quais são os desafios que você vive hoje, na paternidade? Quantos anos tem seu filho hoje?

Meu filho tem um ano e um mês. O maior desafio que estou passando é fazer com que Almodavar perceba a sua individualidade, que ele e a mãe não são um só. Tem sido bastante complicado fazer com que ele fique bem quando a mãe está longe e a maior dificuldade é essa. Tem alguns transtornos com comida, com não querer dormir, mas a gente tira de letra. O que incomoda é essa dependência dele.

Respirar, ter paciência e seguir em frente.

Thiago Queiroz

Thiago Queiroz

Psicanalista, pai de quatro filhos, escritor, palestrante, educador parental, host dos podcasts Tricô e Pausa pra Sentir (dentre outros), autor dos livros "Queridos Adultos", "Abrace seu Filho", "A Armadura de Bertô" e "Cartinhas para meu pai", participou também do documentário internacional "Dads".

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Comentários

8 comentários em “Entrevista: Um Pai Que Usa Saia”

  1. Tiago Brasileiro

    Uau! Que história verdadeiramente linda! Me emocionei. Me chamo Tiago, tb sou pai de um menino e uma menina, de seis e quatro anos, mas talvez seja uma pessoa mais normal do que o Nelson. Sou hetero, em processo de recasamento com a mãe de meus filhos, mas, assim como o Nelson, tb tenho muita emoção à flor da pele e sei exatamente desse amor que sempre cresce e se expande. O amor de ser pai. Por sentir isso, agradeço pela expansão acelerada do universo! E saúdo Nelson e sua bonita e distinta família!

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